Desde que eu nasci, conheço o rosto da Morte.
Era ela quem se
inclinava sobre o meu berço e me ninava com canções fúnebres quando eu não
passava de um bebê. Então, para mim, o rosto de caveira da Morte era até
mesmo mais comum do que o rosto dos meus próprios pais. Na verdade, MORTE foi a
primeira palavra que falei.
Juro, é verdade.
Naquele dia mamãe começou a rezar, e papai ficou fumando um cigarro em sua
poltrona, pálido como um fantasma. Pelo menos foi isso que a Morte me contou.
No dia seguinte fui batizada, com orações fervorosas ao meu redor. Naquela
época eu não sabia – não tinha como entender – que todas aquelas pessoas viam
minha amiga Morte como algo ruim, um mau presságio. E eu era a criança que
havia proferido a palavra de mau agouro.
Lembro-me da Morte me
olhando do fundo da igreja. Ela ficou encostada ao lado de uma cruz, com os
braços de cadáver cruzados sobre o peito e com sua inseparável foice ao seu
lado. O que ninguém mais ali entendia era que minha amiga não era uma coisa má.
Ela era gentil, amistosa, compreensiva e às vezes, nos melhores dias, bonita.
- Esses vivos! – Ela
dizia, passando a mão de ossos no meu cabelo escuro. – São uns grandes
covardes! Se agarram à vida, a cruel e injusta vida, e fogem de mim, a pacífica
Morte. Somente depois que os carrego comigo para o além é que percebem que a
Morte é piedosa e suculenta, e enxergam o quão injusto foram comigo!
Depois, me olhava
quase docemente.
- Mas você é
diferente, Katrina. Você foi escolhida. A única criança que não chora ao ver
minha face e nunca sente medo. Nada, absolutamente nada te assusta.
Você é a minha Aliada.
Eu concordei. E cresci.
Eu estava em meu
quarto lendo um livro de terror quando minha mãe entrou carregando um embrulho.
Ela é uma mulher loira, enérgica e radiante. Minha irmãzinha caçula, Angélica,
é muito parecida com ela. Mas eu sou o oposto, em minha palidez quase mórbida e
meus cachos e olhos escuros.
- Tenho uma
surpresinha para você! – Exclama minha mãe, estendendo camadas de tecido brilhante e rosado diante do meu nariz. Faço uma careta.
- Não quero vestir
isso. – Faço uma pausa, fechando o livro e me sentando na cama de pernas
cruzadas. – Escute, mãe... Não é porque deixei você fazer a bendita festa de
quinze anos que vou deixar você decidir o que eu vou vestir, certo?
Ela coloca as mãos
na cintura, com a testa franzida.
- Katrina, essa coisa
de “gótica” já me cansou. Eu sei o que é ser adolescente e querer ter uma
identidade própria, mas não vou deixar minha filha ficar andando por aí de
preto da cabeça aos pés para o resto da vida, como uma viúva perturbada.
- Já terminou? – Pergunto.
Como ela não responde, eu começo. – Em primeiro lugar não sou gótica. – Digo, embora tenha as minhas dúvidas. – Não pinto
o cabelo nem frequento cemitérios. Eu nem escuto esse estilo de música! Em segundo, a senhora
sabe que não tenho amigos e não quero festa nenhuma, mas insistiu tanto para
organizar esse aniversário que eu acabei cedendo. Mas ter que vestir uma coisa
que eu não gosto é o cúmulo!
Minha mãe senta na
cama com um suspiro.
- Tudo bem! Você
venceu! Mas você bem que poderia se enturmar com outros jovens e ser mais
sociável. Não custa nada.
- Mãe... Eu sou diferente. Não vou mudar. – Se ela soubesse
quem era a minha amiga, iria querer me benzer. E depois me internar. Talvez me
exorcizar.
Ela passa a mão
bronzeada e macia no meu cabelo escuro.
- Tem razão. Não tem
que mudar quem você é. Mas, de uma vez por todas, para que todo esse “luto
eterno”?
Dessa vez, abro um
pequeno sorriso.
- O preto é a única
cor que faz a vida ter algum sentido.
***
A Morte, é claro, foi a convidada de honra na
minha festa de quinze anos. Mas quando eu entrei no salão cheio de gente, ela
não estava lá.
Acho que eu era uma
visão meio chocante: vestido preto e longo, sem nenhum detalhe, cabelos escuros
e ondulados, maquiagem pesada nos olhos, a sobrancelha direita erguida com
superioridade e lábios repuxados de reprovação
(pintados de vermelho sangue).
Eu deveria lembrar
uma aparição – uma bonita aparição. Um rapaz se aproximou de mim e me serviu
uma taça de champanhe de cereja.
- Gostou da
decoração? – Pergunta.
Olho para o mundo
rosado e cheio de babados ao meu redor.
- É nojento. – Respondo,
hostil e seca. Não sei por que estou agindo assim. Sou uma isolada e acho que quero que os outros me vejam como uma
gótica maluca e sombria. Talvez assim me deixassem em paz. – Me dá vontade de
VO-MI-TAR.
Ele ri.
- Você é muito engraçada. – Diz, enquanto se afasta.
Dou de ombros e levo
o champanhe até a boca, mas logo me arrependo: o gosto de ferrugem me dá
vertigens. Era sangue.
Jogo a taça de cristal no chão, cheia de repulsa. Vejo o cara que me deu a taça no outro lado do salão, rindo com outros adolescentes.
Jogo a taça de cristal no chão, cheia de repulsa. Vejo o cara que me deu a taça no outro lado do salão, rindo com outros adolescentes.
Rindo de mim e da
brincadeirinha idiota que fizeram com a “vampira esquisitona”.
Sinto uma onda de raiva: tenho vontade de matá-los! Onde está a Morte quando se
precisa dela?
Meu pai me puxa de
repente para um abraço. Ele já tem o cabelo meio grisalho e algumas rugas de
expressão, mas me parece jovem com seu terno novo. Ele sorri.
- O que houve aí com
esse champanhe? Está tão ruim assim? – Pergunta ele, olhando para a sujeira de champanhe com sangue e cacos no chão aos meus pés.
Eu não respondo, pois
nesse momento vejo a Morte caminhando pelo salão cor de rosa. Me afasto do meu
pai e vou até ela. Mas antes que eu diga qualquer coisa, ela pousa sua mão de
caveira em meu ombro.
- Venha comigo. – Pede
ela. E eu vou.
Quando dou por mim,
estamos em um cemitério. O vento frio chicoteia em minha pele e eu estremeço.
- Há muito tempo
tenho esperado por hoje. – Diz ela, caminhando de braços dados comigo, por
entre os túmulos. – Hoje vai se cumprir uma antiga profecia sobre a Morte e sua
Aliada.
- É mesmo? – Pergunto,
sem interesse.
Ela ergue meu rosto
com sua mão esquelética, fazendo-me encarar suas órbitas vazias e profundas.
- Olhe para mim,
Katrina. Você sabe que eu adoro meu trabalho de carregar as almas para o além,
não é? – Concordo com a cabeça. – E isso é bom para elas também, pois depois da
vida há coisas muito melhores. – Paramos de andar e a voz dela fica mais
áspera. – Katrina, é hora de mudarmos o mundo. Hoje você passará por um teste,
e se for bem, abriremos o Portal.
Sinto sangue seco em
meus lábios.
- Que tipo de portal?
– Pergunto.
- O Portal que separa
mortos e vivos. – Responde ela. – Com sua abertura, as almas e os mortais
compartilharão do mesmo mundo. Não seria ótimo?
Hesito por um
momento.
Não sei se essa história seria muito legal.
Não sei se essa história seria muito legal.
- E qual é o teste? –
Indago.
A Morte sorri com
suas fileiras de dentes brancos e exageradamente retos.
- É muito simples.
Basta escolher uma pessoa... E entregá-la a mim.
Um arrepio percorre a
minha espinha.
- Tenho que matar alguém?
- Exatamente. Mas é
mais fácil do que se imagina. Katrina, você não é uma assassina. Só precisa
escolher uma vítima, a forma como ela vai morrer e pronto! Acontecerá!
- E o que eu ganho
passando nesse teste?
- Essa é a melhor
parte: você demonstrará que está ao lado da Morte definitivamente, e assim
ganhará força, velocidade e capacidades além do que você pode imaginar! Então
iremos abrir o Portal do Além juntas!
Nunca vi a Morte tão
satisfeita antes. Lentamente, abro um sorriso. Damos as mãos e começamos a
pular alegremente.
Sinto-me enlouquecer:
a Morte e eu bailando de forma demente em um cemitério, na noite escura e fria
do meu aniversário...
- Então, querida,
quem é o escolhido? – Pergunta ela quando paramos de dançar.
Penso um pouco,
raciocinando friamente.
- Escolho o rapaz que
me serviu uma taça de sangue na festa! – Digo, com um sorriso demoníaco e
batendo palmas alegremente. – O quero bem aqui, sepultado neste túmulo!
- E como você quer que ele morra?
- Enterrado vivo!
Prenda-o no caixão e deixe-o gritar e implorar até morrer com falta de ar!
A Morte sorri com
aprovação. E quando me dou conta, posso ouvir os primeiros socos e berros
dentro da tumba. Meu rosto perde a pouca cor que tem, mas disfarço isso com um
sorriso.
- Pronto! – Exclama
minha amiga. – Agora é só aguardar que ele perca o ar e eu erguerei sua alma,
enquanto lhe dou seus novos poderes!
- Para que esperar? –
Digo, apressadamente. – Dê-me o poder agora! Logo o infeliz morrerá, mesmo!
Posso ver um breve
instante de hesitação no rosto da Morte, mas ela logo se volta para mim.
- Tem razão! Katrina,
Aliada da Morte, eu lhe dou esses poderes como minha fiel súdita!
A Morte encosta sua
unha preta na minha testa. Um calor estranho começa a penetrar em minha carne.
Então sinto a
explosão de calor e força, que começa por minha cabeça e inunda o resto do meu
corpo, jogando-me para trás. Poder. Muito poder. Ele arde em minhas veias como
chamas.
Fico caída alguns
segundos na relva do cemitério, e quando abro os olhos tudo parece embaralhado,
confuso e colorido. A Morte se inclina sobre mim, estendendo a mão.
- Como se sente,
Katrina? Venha. Vou lhe ajudar a controlar seus novos poderes.
Mas eu a ignoro.
Ergo-me desajeitada, e quando tento cambalear para o túmulo de onde só se
escutam gemidos, acabo correndo tanto que quase passo reto por ele.
Com uma força que eu
nunca tive, quebro a tampa de concreto da tumba e violo o caixão de madeira. O
rosto do garoto está muito vermelho e assombrado, e seus pulmões aliviados
sugam desesperadamente o oxigênio que o ar da noite oferece. Sua pele é
brilhante a luz do luar. Fico ali contemplando o rosto daquele que eu condenei
e agora salvei.
E quando me viro, levo um susto: ali estava a
Morte, carregando a ira do inferno e feia como o diabo.
- Você me traiu! – A
voz dela era um gemido rouco e arrastado. – Você me enganou, Katrina. Você não
matou sua vítima como combinamos!
Comecei a rir. A rir.
Dei uma sonora e deliciosa gargalhada.
- Eu te enganei,
Morte! Te passei a perna! – Digo cantarolando e saltitando.
A Morte ficou mais
colérica. E mais feiosa.
- Eu confiei em você,
Katrina. Mas você traiu meu maior segredo! Eu retornarei e me vingarei! Conte
com isso! – E desapareceu em uma nuvem negra.
Eu sabia que aquelas não eram palavras vãs.
A Morte nunca gostou
de brincadeiras, e jamais prometeu uma vingança que não cumprisse.
O rapaz conseguiu se
esgueirar para fora do túmulo, ainda assombrado.
- Que tipo de
criatura você é?
Olho em volta,
pensativa. Era quase dia.
- Sou Katrina. – Respondo. – Ex-Aliada da Morte, e agora sua inimiga.
Então vou embora,
caminhando em passos lentos para casa, sem pressa. O ar fresco provocava doces
arrepios na minha pele.
No horizonte, surgem
os primeiros raios de sol. Amanheceu.
Gente, eu escrevi esse conto para a biblioteca da miha escola, e espero que quem acessar meu blog goste... ♥
ResponderExcluirBjos...
Noss muito Loco esse conto, até eu qe não gosto de ler gostei, e me interessei !!! Parabéns Giovanna !!!!!
ResponderExcluirParbens é uma historia muito envolvente !!
ResponderExcluiragora quero ler a continuaçao 2,3,4,5,6,7,8,9,10
Que bom que gostaram!
ResponderExcluirJá postei uma continuação!!!
onde ta a continuaçao
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