Pensei
um pouco na pergunta, mas logo desisti.
-
Sei lá. Eu não ia me preocupar muito em ler se estivesse morrendo.
Amanda
sorriu.
Passei
o braço pelos ombros dela, encostando sua cabeça em meu peito, bem acima do meu
coração, mesclando os batimentos com as sacudidas do metrô.
Desde
o primeiro momento em que eu havia colocado os olhos em Amanda, sabia que não
conseguiria mais dormir em paz.
Desde
o nosso primeiro beijo, em uma biblioteca pública, eu sabia que já estava
apaixonado demais para ser racional e não agir como um trouxa.
Desde
a nossa primeira noite juntos, eu soube que ela era a mulher da minha vida.
Ela
era a garota mais bonita da faculdade, a aluna caloura por quem todos os caras,
até mesmo os veteranos, ficavam deslumbrados.
Mas
foi comigo com quem ela acabou ficando.
E apesar
de ser linda, Amanda não era apenas um rostinho bonito.
O cabelo preto e longo, naturalmente liso, os olhos castanhos e as roupas escuras escondiam uma personalidade fantástica.
O cabelo preto e longo, naturalmente liso, os olhos castanhos e as roupas escuras escondiam uma personalidade fantástica.
Amanda
era uma artista.
Um
incrível talento para a pintura. E nada me deixava tão bobo quanto escutá-la
ler Edgar Allan Poe em voz alta.
Ter
Amanda como namorada havia feito dos últimos meses momentos inesquecíveis.
Os
piqueniques debaixo das árvores mais velhas do parque, os almoços na minha casa
(minha mãe e minha irmã a adoravam), as tardes na biblioteca, os passeios nos
cinemas mais antigos da cidade, e cada minuto chacoalhando no metrô: tudo,
absolutamente tudo, tinha sido maravilhoso, daquele jeito que só as pessoas que
estão ou já estiveram idiotas de amor podem saber.
Amanda
é doce, inteligente, complexa, e, posso dizer, um tanto misteriosa.
Poucas
vezes na vida podemos ter a certeza de que encontramos nossa cara metade,
alguém por quem vale a pena correr todos os riscos, como havia acontecido com a
gente.
Naquele
romance recém-nascido havia apenas uma única coisa que me intrigava um pouco.
Mesmo
depois de seis meses de namoro, de planos para depois da faculdade e de juras
de amor eterno, eu ainda não conhecia a família de Amanda, nem sabia exatamente
onde ela morava.
Bom,
sabia que ela morava com os pais, e que sua casa não era muito longe da estação
(ela descia três estações antes de mim). Mas ela nunca falava muito deles, e
nunca me convidava para ir a casa dela.
Uma
vez, quando sugeri marcar um jantar para conhecer os pais dela, Amanda ficou
muito chateada.
-
Não é uma boa ideia, Fausto. – Ela disse, com um suspiro.
Nunca
mais falei nada sobre isso.
Mas
aquilo me perturbava às vezes.
Talvez
Amanda achasse que os pais dela não me aprovariam.
Tudo
bem, um braço coberto por tatuagens e cabelo azul escuro não é o visual que os
pais mais desejam para o namorado de sua filha, mas eu tinha fé de que poderia
conquistá-los com o tempo, se ela me permitisse tentar.
Eu
não era o primeiro namorado dela.
Amanda
já havia tido seis namorados antes de mim (enquanto eu só havia namorado duas meninas
antes dela, sendo que uma delas foi uma colega da quarta série com quem eu só
havia passeado de mãos dadas e dado alguns selinhos), mas ela nunca havia
mencionado se havia apresentado algum para os pais.
Então,
apesar de querer conhecer meus sogros, eu respeitava a escolha de Amanda e
esperava pacientemente que ela decidisse quando seria o momento certo.
Eu
esperaria o quanto fosse necessário, sem pressioná-la.
Porém,
nos últimos dias, Amanda estava um pouco distante.
Eu
falava com ela, mas ela raramente me escutava. Ficava distraída, olhando para o
nada, e eu tinha que repetir a mesma pergunta pelo menos três vezes para
conseguir uma resposta.
Isso
era um tanto inquietante, já que Amanda sempre foi bastante atenta a tudo e
muito observadora.
Eu
sabia que havia algo errado.
E
aquele algo errado só podia ser na casa dela. Comigo, com a faculdade e com as
poucas amigas que tinha, Amanda estava muito bem.
Hoje,
depois da última aula, quando normalmente saíamos juntos da classe de
Comunicação, ela pegou a bolsa e saiu apressada da sala, sem dizer nada.
Confuso,
a segui, mas a perdi de vista no corredor apinhado de gente.
Só
a encontrei meia hora depois, saindo do banheiro feminino, com os olhos
vermelhos e inchados, evidência clara de que ela havia tido uma crise de choro.
Eu
fiquei sem palavras, mas ela apenas me abraçou e eu a apertei forte, como se
quisesse protege-la do resto do mundo com aquele gesto.
-
Eu te amo – ela sussurrou. – Eu nunca amei ninguém como eu amo você, Fausto. Eu
preferia morrer a... – e se calou com
uma espécie de soluço.
-
Amanda...
Demorei
um pouco para conseguir acalmá-la e arrastá-la comigo para a estação.
Ficamos
em silêncio, abraçados, no meio de muitos outros estudantes que riam e
conversavam dentro do vagão sacolejando, mas ao mesmo tempo isolados do mundo.
Eu
havia tentado perguntar, mas ela não queria responder.
Desde
que nos conhecemos, eu nunca havia visto Amanda se descontrolar daquele jeito.
Ela
tremia nos meus braços, muito abalada.
A
situação estava fora de controle, pelo jeito.
Eu
não podia ficar de braços cruzados.
Tinha
que descobrir qual era o problema e como eu poderia ajuda-la.
Quando
chegamos à estação em que Amanda descia, esperei que ela me desse um beijo
rápido e saltasse do vagão e saí logo em seguida, me mesclando aos outros
passageiros que desembarcavam.
Por
sorte, ela não se virou para acenar pra mim, como normalmente fazia, nem olhou
para trás.
Ela
saiu da estação em passos apressados, descendo a rua.
Uma
parte de mim se sentia patética e envergonhada por estar seguindo minha própria
namorada, a outra só queria andar o mais silenciosamente possível pela rua
escura e deserta para não despertar suspeitas.
Amanda
logo parou diante de um portão de grades pretas e bem alto.
Me
escondi atrás de um carro estacionado enquanto a observava entrar em um casarão
antigo, bastante comum naqueles bairros.
Observei
que o portão não tinha cadeado nem era trancado a chave: bastava puxar o
trinco, como Amanda havia feito.
Minhas
mãos começaram a suar e confesso que o meu coração começou a bater mais
depressa: era a minha última chance de voltar atrás ou praticar uma invasão de
domicílio.
Mesmo
temendo entrar numa fria, fui em frente.
Abri
o trinco do portão e entrei, fechando-o atrás de mim.
O
jardim até que era grande, e haviam algumas árvores enormes.
Olhei
para a casa, que parecia muito escura.
Mais
escura do que deveria estar.
Talvez
os pais dela já estivessem dormindo...
Parei
a meio caminho da porta.
Eu
deveria bater?
Ou
mandar uma mensagem para Amanda?
Antes
que eu alcançasse o celular no bolso, um rosnado me fez olhar para o lado.
Amanda
nunca havia me contado que tinha um cachorro.
Um cão
preto e enorme, só pra constar.
Quando
percebi que não haveria conversa e que ele ia avançar, corri e em dois pulos
estava em cima de uma árvore.
O
barulho logo atraiu a atenção dos moradores da casa, e uma luz se acendeu.
Amanda saiu pela porta da frente e seus olhos se esbulharam ao me verem.
-
Fausto? – Ela se aproximou de mim e o cachorro correu para o fundo do quintal.
– O que você está fazendo aqui?
Desci
da árvore, envergonhado. Esperava que ela ficasse zangada comigo, mas ela
apertou os meus braços e pareceu apavorada.
-
Você tem que sair daqui! Tem que ir embora antes que ela o veja!
Antes
que eu pudesse dizer algo, uma mulher alta e espantosamente magra apareceu na
porta.
Ela
usava um vestido preto e um véu rendado sobre o rosto.
-
Amanda? Então esse é o seu novo namorado?
Ela
não respondeu, apenas apertou o meu braço com mais força.
Limpei
a garganta antes de falar.
-
Boa noite, senhora. Desculpe qualquer incômodo.
Ela
emitiu um som que parecia um riso, mas eu não tive certeza.
-
Incômodo? Minha filha não poderia ter me feito uma surpresa melhor. Entre, o
jantar logo será servido.
Ela
desapareceu dentro da casa.
Olhei
para Amanda, mas tudo o que ela fez foi abaixar a cabeça e a seguir.
A
casa era pouco iluminada.
Entramos
em uma sala grande, onde um homem mexia em um notebook.
-
Fausto, esse é o meu pai. – Amanda disse, tão baixo que mal a escutei.
O
homem ergueu a cabeça e me cumprimentou vagamente, e deu um sorriso de canto
antes de voltar a digitar.
-
Ah, o amor! – A voz da mulher de véu me assustou, vinda do topo da escada que
levava até o segundo andar. – Nada tão inspirador quanto um jovem apaixonado.
Posso até sentir o cheiro doce que o
coração dele exala.
Não
soube o que dizer, mas ela não parecia esperar uma resposta.
-
Vamos, o jantar está na mesa.
Me
sentei ao lado de Amanda em uma grande mesa na sala de jantar.
O
pai dela se sentou diante de nós, e a mãe ocupou a cabeceira da mesa, mas
apesar do cheiro agradável da carne assada, apenas o pai de Amanda parecia ter
apetite.
Eu
comi apenas o suficiente para não ser mal educado, Amanda só cutucava a carne
com o garfo, e a mãe simplesmente não se serviu.
Apenas
apoiou o queixo nas mãos e ficou nos observando comer, ainda usando o véu.
Comecei
a me perguntar se ela teria alguma doença de pele. Talvez tivesse sofrido um
acidente e tivesse cicatrizes no rosto.
Será
por isso que Amanda nunca havia me convidado para ir até a sua casa?
Talvez visitas aborrecessem sua mãe. Talvez
ela não gostasse dos olhares curiosos de estranhos como eu.
Comecei
a me sentir culpado.
-
Como estava o jantar? – Perguntou ela, de repente.
-
Ótimo. – Respondi, forçando um sorriso. – Estava tudo delicioso.
-
Bem, agora quero que conheça a casa, Fausto. Acho que vai gostar da sala de
armas. Meu marido e eu colecionamos todo tipo de artefato, alguns medievais.
Meus
olhos brilharam. Aquilo parecia fantástico.
Amanda
e eu estávamos cursando História na faculdade. Me espantava ela nunca ter
comentado nada.
-
Eu adoraria. – Respondi.
-
Não, Fausto. – Amanda apertou o meu braço. – É melhor você ir. Já está tarde.
Sua mãe vai ficar preocupada.
-
Amanda, não seja grosseira. – A mãe a censurou. – Vai levar só alguns minutos.
Ela
se levantou e eu a segui até o segundo andar.
A
sala de armas era ainda melhor do que eu poderia imaginar, apesar de escura.
Haviam machados, espadas e punhais tão antigos quanto peças de museus, presos
nas paredes vermelhas e protegidos por um vidro.
Mas
a mãe de Amanda passou direto por eles, e foi até a parede no fundo da sala,
ocupada apenas por seis retratos.
Quando
me aproximei, vi que eram fotos de rapazes.
-
Amanda é uma garota maravilhosa. – Disse ela, olhando para os retratos.
Não
consegui conter um sorriso.
-
Ela é a garota mais fantástica que eu já conheci.
-
Ela é mais do que isso. – Sussurrou. – Ela é a melhor filha que uma mãe poderia
desejar. Não importa quantas vezes tenha que se sacrificar, sei que sempre fará
o que é melhor pra mim.
Ela
se virou para me encarar.
-
Sabe qual é a coisa mais preciosa e cheia de vida no mundo, Fausto? Um coração
apaixonado.
Eu
não pude ver o seu rosto, mas senti sua respiração grave sob o véu, e aquilo,
por algum motivo que desconheço, me fez sentir um calafrio na espinha.
-
Mãe! – Amanda entrou correndo na sala, com lágrimas nos olhos. – Ele não, mãe!
Por favor... Eu não poderia...
-
Amanda – a voz dela era seca e sem nenhuma gentileza dessa vez. – Não me
atrapalhe. Está se esquecendo do que se trata isso tudo? Eu sou sua mãe. Eu te
dei tudo o que eu tinha. Ninguém é e nunca será tão importante pra você quanto eu.
Amanda
apenas se colocou entre nós, desafiadora.
Eu
estava cada vez mais confuso com aquela conversa.
Talvez
fosse melhor eu ir embora.
-
Acho que já está ficando tarde... – Comecei.
-
Calado, rapaz. – Me interrompeu a mãe. – Logo terá sua moldura nessa parede. E
acho que será o rosto mais bonito.
-
Mãe, fique longe dele. Você não tem o direito de...
Mas
ela não deixou Amanda terminar.
Com
uma força descomunal, segurou Amanda pelos ombros e a arremessou para o lado
oposto da sala, como se ela fosse uma boneca de trapos.
Antes
que eu pudesse fazer qualquer coisa, ela se voltou para mim.
-
Ah, eu estou com tanta fome...
Ela
ergueu o véu, e eu deixei um grito de pavor escapar.
Era
de longe o rosto mais horrendo que eu já havia visto. Os olhos eram dois pontos
brilhantes perdidos na face enrugada, e a quando ela abriu a boca, exibiu
dentes afiados e separados.
Parecia
ser a cara do próprio diabo.
Era
um monstro mais terrível do que qualquer pesadelo poderia criar.
-
É assim que eu fico enquanto sua namorada fica cada vez mais exuberante! O
mínimo que ela pode fazer por mim é me trazer os doces corações de seus amantes
para que eu possa florescer por mais um ano!
Tentei
correr, mas minhas pernas não me obedeciam.
Era
mais do que pavor: era como se uma corda invisível se enrolasse pelo meu corpo!
Ela
cravou as unhas em meu peito e rangeu os dentes perto do meu rosto, fazendo com
que eu sentisse o cheiro de açougue e podridão de seu hálito.
Foi
quando eu vi um dos machados medievais descer com força até o seu pescoço,
arrancando um urro de dor da criatura.
Cai
no chão, livre do feitiço que me paralisava, mas tonto demais para conseguir me
manter em pé.
Amanda
se inclinou sobre mim, com o rosto borrado pelas lágrimas.
-
Eu lamento muito, Fausto. Mas vai ficar tudo bem agora.
***
Isso
tudo aconteceu há três anos.
Agora
Amanda e eu estamos de casamento marcado, e muito felizes com isso, embora a
família dela não vá comparecer à cerimônia.
É
que demônios geralmente têm aversão à igrejas.
Por
sorte, ela nasceu inteiramente humana.
Quando
as pessoas me perguntam sobre a minha relação com os meus sogros, digo que o
pai de Amanda não é de falar muito.
Quanto
a mãe, não tenho nada a temer desde que ela perdeu a cabeça.
FIM
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMeu Deus!! Maravilhoso! Amei esse conto, é sem duvidas o melhor que você já escreveu. Estou sem palavras, ficou incrível.
ResponderExcluirMuito obrigada, meninas! :3
ResponderExcluirFico feliz que tenham gostado tando XD