As histórias existem para serem
contadas.
Contos de fadas sobreviveram através
dos séculos, não porque são bonitinhos, mas porque nos ensinam lições. Isso é,
se prestarmos atenção.
Cinderela fuma cigarros agora, mas
está tentando parar. Ela usa um par de tênis de cano alto, e não precisa de
convites para o baile, mas sim que alguma empresa se interesse pelo seu
currículo.
Ela descobriu que a Fada Madrinha era
na verdade um cartão de crédito, e tudo se transformou em dívidas terríveis
depois da meia-noite do quinto dia útil.
Mas ela ainda gosta de dançar. Só
pegou aversão por sapatos desconfortáveis, que se perdem por aí. E quando
dirige pela cidade em seu fusca laranja – não muito maior do que uma abóbora –
espalha as vozes de mulheres cantando o bom e velho rock n’ roll.
“Mas e o príncipe?”, você me pergunta.
O príncipe é um cara legal, mas ele se casou com uma duquesa em Londres.
Cinderela assistiu pela TV. Bom pra ele.
Ela gosta de ficar sozinha. Contudo,
apesar dos problemas no âmbito familiar, fez algumas boas amigas. Cinderela
nunca pensou que poderiam existir mulheres que gostassem dela, mas a vida é
mesmo uma caixinha de surpresas.
O único problema é que Cinderela está
cansada de limpar. De lavar roupa, esfregar o chão, ariar panelas. É isso que
ela fez a vida toda.
Quando morava com a madrasta, dizia a
si mesma que era obrigada a trabalhar para compensar o desleixo das irmãs
postiças, mas agora, em seu próprio apartamento, não há como ignorar: ela é
obcecada por limpeza.
Esfrega o chão até suas mãos ficarem
vermelhas, e se esforça tanto para eliminar cada partícula de poeira que suas
costas doem ao final do dia.
E ela até poderia beber uma taça de
vinho antes de dormir, mas não se atreveria a deixar a taça suja na pia até a
manhã seguinte.
Você conhece essa sensação, de não se
permitir um minuto para relaxar? Até em seus sonhos Cinderela está limpando e,
quando acorda, seu primeiro pensamento é arrumar a cama.
Ela coleciona desinfetantes perfumados
e nunca os confunde que os amaciantes de roupas. Não cozinha nada que leve
molho ou que precise da batedeira. Gosta do cheiro de incenso, mas não tolera
as cinzas caindo em seus móveis.
E o mais triste de tudo é que não
importa o quanto ela prive a si mesma.
Nunca está limpo o suficiente.
Mesmo ao tomar um banho que deveria
ser relaxante, Cinderela esfrega sua pele com a bucha, com força, com
voracidade. É possível lavar o medo? A insegurança? Dá pra fazer a ansiedade
escorrer pelo ralo?
Eu não sei. A única coisa que eu
compreendo, nesse momento, é que Cinderela precisava de uma maneira de sentir
que estava no controle da própria vida e do próprio destino, mesmo que tudo não
passasse de uma ilusão do seu Fantástico Mundo da Faxina.
Até que um dia ela encontrou a Gata.
Ou talvez a Gata a tenha encontrado. Ela era malhada e tinha as patas sujas.
Parecia estar morando na rua há um bom tempo. Mas ela era tão dócil e pequena,
como uma coelhinha...
O apartamento não permitia animais,
mas Cinderela sabia que a vizinha morava com um cachorro. E que um porco morava
no apartamento de baixo, a julgar pelo lixo na varanda.
Então ela apagou o cigarro e escondeu
a Gata dentro do casaco, o que fez a felina ronronar. Passou em um pet shop e
comprou ração, areia sanitária e shampoo anti-pulgas.
No apartamento, teve que ligar a TV em
um volume desconfortavelmente alto para encobrir os miados desesperados no
banheiro.
Foi duro, e Cinderela tinha arranhões
nos braços quando terminou, mas a Gata estava limpa e seca. Como o resto do
apartamento. Como o resto do seu mundo.
Mas a bichana logo encontrou uma
maneira de se vingar, pulando pelas prateleiras e derrubando porta-retratos,
livros e os itens de decoração nada
baratos.
Cinderela tentou manter a ordem das
coisas. Tentou de verdade. Mas não havia como impedir os pulos ágeis da Gata e
sua curiosidade felina.
- Olhe o que você está fazendo, sua
Gata Borralheira! _ Exclamou.
Mas Cinderela não conseguia ficar
realmente brava. Mesmo diante do caos. Da bagunça. Do descontrole completo.
Com um suspiro, deixou-se cair no sofá.
O espelho da sala permitia que ela visse seus cabelos desalinhados, a camiseta
molhada e os braços arranhados, além das unhas com esmalte vermelho
descascando.
Pegou o controle da TV e mudou de
canal. Estava passando uma comédia romântica boba. Tão boba que ela não fez
questão de mudar de canal. Fez pipoca de microondas e encheu uma taça de vinho.
Voltou para o sofá, e logo a Gata se
juntou a ela. Cinderela pegou no sono, com o balde de pipoca ainda com restos
de milho ao seu lado e a taça suja de vinho sobre a mesa de centro. Seus dedos
salgados por causa do sal da pipoca. Ela não havia escovado os dentes, nem
trocado de roupa, e a TV ainda estava ligada.
Cinderela não dormia tão bem há
tempos. E naquela noite sonhou com alguma outra coisa, que não tinha nada a ver
com sua mania de limpeza. Ela podia se preocupar com a bagunça amanhã.
As histórias podem ser muitas coisas,
menos bobas.
Bobas somos nós, quando acreditamos
que podemos controlar ou prever o nosso próprio destino – seja ele um belo príncipe,
sapatinhos de cristal ou uma gata vira-lata.
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